quarta-feira, 23 de julho de 2008

Kirchner manda na Argentina - mas qual dos dois?

A derrota parlamentar de Cristina Kirchner no conflito agrário reaviva o debate sobre a verdadeira distribuição de funções no "casal presidencial"

Ninguém imaginou o ex-presidente argentino Néstor Kirchner (2003-2007) cochilando no sofá familiar da Quinta de Olivos, ensimesmado na melancolia e nas lembranças, resignado à quietude política e à submissão. Nunca o imaginaram em uma aposentadoria precoce os que o viram liderando as manifestações de rua de apoio a sua mulher, a presidente Cristina Kirchner.

"Viva a pátria! Viva o general Perón! Viva Eva Perón!", gritou Kirchner esta semana na Praça do Congresso em Buenos Aires, um dia antes de o Senado rejeitar o novo imposto governamental sobre as exportações agrícolas, o cavalo-de-batalha nacional desde o início das hostilidades em 11 de março passado entre o Executivo e o setor agrícola. Inesperadamente, o voto do vice-presidente, Julio Cobos, dissidente da União Cívica Radical, deu a vitória à oposição. A derrota dos governistas animou o debate sobre as conseqüências políticas da coabitação governamental e a divisão de papéis entre os membros do casal mais poderoso da Argentina.

Os Kirchner perderam a batalha parlamentar mais importante, apesar de terem apostado, para ganhá-la, na pressão, no ativismo de rua e na liturgia do peronismo rude: o tambor, a matraca e os piquetes diante do Congresso. O casal fracassou na votação do imposto e atravessa horas de frustração e amargura, ampliada pela fratura do Partido Justicialista (PJ, peronista) e por seus tropeços nos meandros da governabilidade. Um ano antes da crise de quinta-feira, quando era previsível a vitória de Cristina Kirchner nas eleições de 28 de outubro de 2007, o analista Joaquín Morales aconselhou o casal a assinar um contrato de convivência no poder porque Néstor Kirchner, líder do PJ, "está acostumado a mandar, e de maneira brutal, há 20 anos".

O ex-senador Eduardo Menem, irmão do ex-presidente Carlos Menem, entrincheirado na direita, em uma das facções peronistas contrárias ao governo, adivinhou os termos do contrato: "Quem manda no país é Néstor Kirchner e não sua mulher. Ele toma as decisões, ele tem o protagonismo, ele toma as decisões de 'patotear' [pressionar com piquetes]". A presidente, na opinião do importante opositor, "cumpre apenas um papel protocolar: aqui só há um poder, autoritário, que é o modelo de Kirchner, baseado em atos de violência".

Os violentos piquetes que paralisaram as atividades da Aerolíneas Argentinas pareciam sintonizar com a estratégia oficial de intervir na companhia adquirida há sete anos pelo grupo espanhol Marsans e vendida nesta quinta-feira ao Estado, segundo suspeita um empresário espanhol com interesses na Argentina. "A mesma coisa estão tentando fazer com outros investimentos espanhóis, entre eles os da Repsol, forçando as coisas, mudando as regras do jogo segundo lhes convém. O casal tripudiou a segurança jurídica."

O casal tripudiou muitas coisas em um país acostumado ao estrelato dos casais presidenciais, encarnados em Evita Duarte (1919-1951) e o general Juan Domingo Perón (1895-1974). Um dos imitadores mais radicais do prócer 'gaúcho' é Néstor Kirchner, açoite dos militares genocidas, intransigente, inclinado a menosprezar o discrepante e enquadrado no peronismo nacionalista e esquerdista dos anos 1960, segundo vários analistas.

Ele manda muito de seu escritório no elitista bairro de Puerto Madero, muito próximo da Casa Rosada, residência dos presidentes argentinos. O poder, as cumplicidade sindicais, empresariais e políticas, os recursos acumulados em seu mandato confluíram na frenética organização de concentrações e nas maquinações com ministros, governadores, empresários e dirigentes justicialistas.

"Qual será a reação da presidente agora?", depois da derrota parlamentar, pergunta-se Carlos Malamud, analista do site Infolatam. "Chamará ao silêncio seu marido, que teve nos últimos meses um papel ultradestacado e chegou a eclipsá-la?" Cristina Kirchner, considerada mais propensa ao diálogo e à negociação, mas também temperamental e orgulhosa, negou a todo instante ser a convidada de pedra. "Aqui a presidente sou eu, 'coño'!", espetou supostamente seu marido em 28 de junho deste ano durante uma discussão em sua casa de El Calafate, província de Santa Cruz, segundo publicou o jornal portenho "Perfil". A opinião pública terá de percebê-la no comando, governando, porque a manipulação a quatro mãos do conflito agropecuário consumiu sua imagem: a popularidade da presidente caiu de 56% em janeiro, no início de seu mandato, para 20% atuais.

"Hoje nos encontramos com um peronismo dividido. De um lado Kirchner e seus seguidores e do outro todos aqueles que em algum momento foram derrotados pelo então poder efetivo e que hoje esperam cobrar vingança", acrescenta Malamud. Para esse analista, o modelo de condução política dos Kirchner se esgotou e no futuro nada será igual. Deverá mudar a prepotência e o autoritarismo atribuídos ao casal presidencial, o nacionalismo antigo e intervencionista de algumas decisões e o caudilhismo agitador de um homem alérgico à modorra do sofá familiar, apelidado nos meios jornalísticos de "o ex-presidente em exercício".

Fonte: UOL/El País

Nenhum comentário: