sexta-feira, 30 de maio de 2008

Por que o Ocidente não compreende o mundo árabe?
Barreiras entre o mundo ocidental e o muçulmano: terrorismo, preconceitos e religião politizada dificultam a integração dos muçulmanos
"Não entendo os imigrantes: vêm para o nosso país, vivem ao nosso lado e depois querem mudar nossas normas e costumes. A Espanha não é um país muçulmano e não tem por que aceitar essas tradições arcaicas. Colocar o véu islâmico em uma menina é impedir que ela aprenda, é excluí-la da escola pública", diz María, uma jovem catalã de 17 anos que estuda no Instituto Francês de Barcelona, em uma mensagem eletrônica enviada para suas amigas Meriem, francesa, e Lydia, italiana.

Não se trata de um diálogo real, mas da ficção criada pelo escritor Tahar Ben Jelloun em seu último ensaio, "Não entendo o mundo árabe" (editado pela Aleph e em catalão pela Empúries), a partir do diálogo entre quatro adolescentes.

Existe uma incompreensão do mundo muçulmano e árabe, dois termos que muitas vezes se misturam no discurso dos ocidentais. Ben Jelloun prefere falar dos árabes para circunscrever o problema, já que também há muçulmanos na China, na Indonésia ou na Índia.

Kebir Sabar, um pesquisador-colaborador da Universidade do País Basco, alertou sobre o ressurgimento de uma ideologia cheia de preconceitos, estereótipos e xenofobia. "As velhas representações do outro no imaginário europeu -o bárbaro ou o mouro, por exemplo- são substituídas ou atualizadas por outras figuras: o 'fundamentalista muçulmano', o 'terrorista árabe ou islâmico' e o 'imigrante clandestino'", salientou o autor.

Uma pesquisa do CIS feita em 2003 mostrou que "os norte-africanos são os imigrantes que inspiram menos simpatias" e em uma escala de 0 a 10 obtinham 5,3, contra 5,9 dos africanos, 5,8 dos cidadãos do Leste Europeu e 6,6 dos latino-americanos. Quais são as causas? Em países com uma longa relação com os árabes existem preconceitos que se expressam inclusive em canções e que têm raízes profundas na história (piratas argelinos, desastres da guerra do Rif, a guarda moura de Franco...).

Medo do terrorismo
O 11 de Setembro e o 11 de Março representaram dois grandes golpes para a aproximação entre o mundo ocidental e o islâmico, e vieram reforçar a idéia do choque de civilizações previsto por Samuel Huntington. E embora esses e outros atentados sejam obra de indivíduos isolados ou com uma relação difusa através da Al Qaeda, se amparam no islamismo fundamentalista. E a mídia ocidental não entra em matizes. "Por que a televisão convida esse tipo de gente que quando fala sobre o islã assusta os europeus? São pessoas que caricaturizam a religião. Não deveriam lhes dar a palavra, não lhes dêem publicidade", diz Meriem, a protagonista meio marroquina meio francesa, que vive em Paris. Seu mentor, Ben Jelloun, afirma que há intelectuais do islamismo moderado e críticos do fanatismo, mas "não são convidados para os programas de televisão". E acrescenta que o que existe é "um choque de ignorâncias e de preconceitos".

As últimas detenções de paquistaneses no Raval são um exemplo de como esse tipo de atuação, tanto as dos terroristas como algumas ações preventivas desmesuradas da polícia, acentuam a islamofobia. Depois desse episódio, um grupo de entidades muçulmanas divulgou um comunicado em que conclamava "a reagir diante da difusão de leituras fundamentalistas do islã e a combater o radicalismo dentro das comunidades muçulmanas". Em particular, alguns signatários manifestaram sua preocupação diante "da presença de discursos salafistas entre as comunidades muçulmanas da Catalunha". Seu eco foi tênue dos dois lados da barreira.

Religião politizada
Em uma sociedade de origem católica que acabava de retirar os crucifixos dos prédios oficiais e das escolas e que deixava para trás uma época em que a igreja compartilhou o poder, a presença de meninas com véus nos colégios, trabalhadores que param para cumprir o Ramadã ou orações na rua criam incompreensões. O recente acordo de um matadouro de Girona que faz coincidir os descansos com as horas de oração é considerado por alguns um convênio pioneiro e por outros, um passo atrás.

"O lenço não é uma simples peça de vestimenta, é um símbolo político. Quando uma menina se cobre com o lenço é porque quer ser reconhecida como muçulmana praticante; e logo depois se nega a fazer aulas de ginástica (não quer vestir uma malha) e depois rejeita a aula de biologia porque dão explicações científicas sobre a origem do homem", diz o e-mail de Meriem. Jelloun acredita no laicismo e considera que o primeiro passo deveria ser uma escola onde se ensinasse a história das religiões, e não o proselitismo (cristão ou muçulmano). Só uma pedagogia baseada na tolerância permitirá avançar.

Os imigrantes latino-americanos, por sua proximidade com a cultura e a língua espanholas e por sua tradição associativa, tendem a criar entidades e adotar porta-vozes. Entre os marroquinos e entre os africanos é mais difícil. Na Catalunha, somente em abril passado surgiu uma federação de entidades culturais catalãs de origem marroquina. Eles mesmos fizeram um mea culpa por ser um dos coletivos pior organizados. A necessidade de dar coesão ao tecido associativo anda junto com a de trabalhar para oferecer um âmbito de diálogo, reflexão e debate. Inclusive se anunciou a criação de uma Casa do Marrocos em Barcelona. Poderia ser um passo a mais.

"Tudo começou com Khomeini"
A entrada dos radicais islâmicos na política começou no Irã com a revolução de Khomeini, em 1979. É a hipótese de Tahar Ben Jelloun (nascido em Fez, Marrocos, em 1944). O ex-dirigente iraniano disse que o islã seria político. E o fracasso das ideologias progressistas no mundo árabe propiciou que o islã ocupasse esse vazio.

"De uma religião se fez uma ideologia, e isso é um perigo", afirma Jelloun, um prestigioso intelectual que vive entre Tânger e Paris.

Na opinião dele há outras tentativas como o aparecimento dos Irmãos Muçulmanos no Egito (1928), mas foi Khomeini "quem conseguiu liberar o imaginário do fanatismo". E também lembra que a vitória da revolução iraniana foi louvada em sua época por intelectuais como Michel Foucault, Jean Genet ou Claude Mauriac, que não viram que essa revolução se dirigia para uma ditadura.

Fonte: La Vanguardia

domingo, 25 de maio de 2008

Ruanda busca paz à sombra do genocídio

Catorze anos após matança de 1 milhão de ruandeses, governo promove harmonia entre etnias, mas ainda há genocidas foragidos

Referências a grupos étnicos foram abolidas e país vive crescimento econômico, mas atentado a memorial mostra que ainda há riscos


Como grande parte da população de seu país, Theógene Nzabana foi apresentado ao genocídio de Ruanda em 7 de abril de 1994. Na véspera, a queda do avião que levava o presidente Juvenal Habyarimana servira de pretexto para o início de um morticínio que vitimaria 1 milhão de pessoas da etnia tutsi, além de moderados de sua rival histórica hutu, em apenas três meses.
Mas naquela tarde de abril, a extensão dos massacres ainda não estava desenhada. Prefeito da vila de Kanzenze, o pai de Theógene, Gaspar, um tutsi, foi chamado a resolver um impasse na pequena igreja de Ntarama, perdida entre bananais a 30 km da capital, Kigali.
"A igreja estava cercada por interahamwe [milícia hutu], e lá dentro havia centenas de tutsis", lembra Theógene, então com 7 anos, que acompanhou o pai na tentativa de mediação.
"Meu pai chegou dizendo que aquilo não precisaria acontecer, que não precisava haver terror. Mas ele acabou silenciado por um golpe de facão, e depois outro e outro. Eu fugi. Certamente acharam que não valia a pena me perseguir", diz ele. Sua irmã, que tinha nove anos, também acabaria assassinada.
Por toda parte em Ruanda, o esforço em superar a lembrança do genocídio esbarra em histórias parecidas e em ameaças concretas. Milhares de acusados pelos massacres já foram condenados, mas cerca de 20 mil ainda aguardam julgamento. Cerca de 60 mil genocidas confessos foram libertados, por falta de lugar nas cadeias.
Pequeno país da África central com uma das maiores densidades populacionais do continente, Ruanda há uma década cresce ao menos 5% ao ano. Em 2006, Kigali ganhou o primeiro shopping e, no início deste ano, uma bolsa de valores.
A capital é segura, de ruas bem pavimentadas e está coalhada de turistas, sobretudo norte-americanos, que vêm ver os gorilas que vivem nas florestas do norte do país. A pobreza ainda atinge 50% da população, mas há uma década eram 80%.
A ameaça de novos conflitos não foi erradicada, apesar do governo difundir que Ruanda é uma sociedade "pós-étnica".
No mês passado, uma granada lançada no memorial do genocídio em Kigali matou um policial. Cerca de 20 mil radicais hutus ainda se refugiam nas florestas do Congo e representam uma ameaça permanente. Há 13 "peixes grandes" que organizaram ou financiaram o genocídio foragidos do tribunal da ONU.
"As relações entre hutus e tutsis hoje são boas, há convivência pacífica e são comuns casamentos entre membros das duas etnias. Mas nós sabemos que existem matadores que pretendem terminar sua missão", diz Naphtal Ahishakiye, 33, diretor da Ibuka, ONG que representa 400 mil sobreviventes do genocídio.
Ele escapou porque seu pai decidiu esconder os cinco filhos em pontos diferentes da mata ao redor de Kibuye, no oeste do país, para aumentar as chances de ao menos um sobreviver. Ahishakiye passou dois meses numa floresta e um mês junto a um rio, sozinho. Foi o único a escapar.

Reconciliação
Antes da matança, os hutus eram 85% da população, e os tutsis 15% (o censo étnico agora foi banido). Os tutsis, em média mais altos e com nariz mais fino, teriam emigrado da Etiópia no século 16 e dominado comunidades hutus autóctones, segundo a teoria mais difundida.
No século 20, os tutsis foram escolhidos pelos colonizadores belgas para formarem uma elite entre os colonizados, o que gradualmente gerou ressentimento e deu origem à ideologia do "poder hutu". Antes do genocídio, houve massacres e exílio de tutsis nos anos 50 e 60.
Nos anos 80, os filhos dos exilados formaram um exército rebelde, liderado pelo general Paul Kagame, cuja invasão de Kigali em junho de 1994 pôs fim às mortes. Ele hoje preside o país com mão de ferro.
Sua prioridade é minimizar as diferenças étnicas e promover o sentimento nacional. Sob o manto do combate à "ideologia do genocídio", líderes oposicionistas são perseguidos, e jornalistas são silenciados.
Uma lei estabelecendo penas para quem promover o genocídio está no Parlamento, e o presidente terá carta branca para definir seus critérios. Professores têm de ter aulas de "civismo" dadas pelo governo.
O governo criou uma comissão nacional de reconciliação, cujo último relatório diz que "um clima de confiança e harmonia está crescendo entre os ruandeses". Referências à etnicidade em documentos, que ajudaram os genocidas a identificar as vítimas, foram abolidas.
Os laços de identificação étnica não sumiram entre a população, porém. Jean-Pierre Ntahomvukiye, um professor hutu, reclama que seu grupo é estigmatizado. "Eu nunca persegui nem matei ninguém. Nesse sentido, também me sinto uma vítima do genocídio."

Fonte: Folha de São Paulo